... Várias pessoas vestidas de túnica branca, de quem eu não pude
ver nem rostos, nem pés... Meu avô materno, Henrique, falecido quando eu ainda
era adolescente, ao meu lado esquerdo, e Dona Ana, amiga de vinte e cinco anos,
falecida em dois mil e doze, ao meu lado direito, ambos imóveis, plácidos...
Uma luz branca intensa, quase cegante e uma paz indescritível. Eu flutuava em
direção à luz, sentindo um imenso desejo de descansar, sendo levada apenas pelo
desejo de encontrar aquela paz.
Quando, de repente, um pensamento veio à minha cabeça:
"espera aí, essa luz é a morte! Não está na minha hora! Eu tenho a minha
filha para cuidar!"
Não sei quanto tempo depois, eu acordei com um tremendo incomodo
doído na garganta, causado pelo tubo respiratório, e meu cunhado, Luiz, à minha
frente, dizia que eu havia estado em coma por quatro dias.
Acho que minha irmã também estava lá, mas não me recordo. Não me
recordo muito bem de várias coisas. Os fatos vêm surgindo paulatinamente à
minha cabeça. Mas a presença do Luiz é sempre muito forte. Um grande amigo de
sempre e pra sempre.
Eu tive uma tosse seca, de uma alergia conhecida, que tentei
controlar com xaropes de uso comum. Após dez dias de persistência, resolvi
procurar o médico. Na emergência do Hospital Icaraí, em Niterói, cidade em que
resido, me fizeram um raio X dos pulmões e disseram que eu tinha uma crise de
asma. Injetaram-me fenergan e me colocaram ao nebulizador. Três dias depois, eu
voltei ao mesmo hospital, com os mesmos sintomas, entretanto, muito pior: com
muita falta de ar e dores no peito e nas costas. O diagnóstico foi o mesmo e o
tratamento igual, exceto pelo xarope prescrito para tomar em casa.
No dia seguinte, apesar do socorro hospitalar e do novo xarope, a
falta de ar havia aumentado e o corpo estava muito fraco. Fui orientada pela
minha irmã, Silvia a, na manhã seguinte, tomar um carro até a casa do Nelson,
um amigo médico, em Ipanema, onde nos encontraríamos, logo cedo.
Na referida manhã, eu não pude sequer me levantar. Liguei para
minha amiga Ana Claudia para me ajudar a me vestir e me colocar no táxi, pois
eu já me encontrava sem forças, com muita falta de ar e dores por todo o corpo.
Chegando à casa do Nelson, à ausculta, ele logo diagnosticou a
pneumonia e fomos às pressas para o hospital, que fica a meia quadra do seu
apartamento.
Saturação do oxigênio no sangue a oitenta e três por cento. Fui
logo colocada no balão de oxigênio e todas as perguntas foram prontamente
respondidas. O resultado da ressonância magnética foi pneumonia dupla com
edema. Até esta altura, eu ainda não tinha febre, surpreendentemente. CTI na
hora. Fui dopada para a indução ao coma e a intubação. A coisa ficou bastante
feia. No dia seguinte à minha internação tive uma parada respiratória e fui
reanimada. Mas eu só soube disso depois. Às vezes penso que, se eu não tivesse
ido à casa do Nelson naquela manhã, teria morrido em casa no dia seguinte.
Pensar nisso é assustador!
Acordar do coma foi como um pesadelo. Era como se dormir fosse a
vida real, a paz, tudo o que se deseja, embora a única lembrança que eu tenha
do período seja o encontro com o meu avô e a dona Ana. Mas acordar foi o
inferno: dor, incômodo, tribulação interna, ansiedade, medo, vontade de morrer,
solidão, mas não esse tipo de solidão de estar sozinho, esse também, mas além
desse, aquele tipo quando só você sabe o que está sentindo e que, por mais que
as pessoas tentem te dar força, e elas tentam de verdade, essa força nunca te
alcança, porque a força que você precisa só pode vir de você mesmo. Essa foi a
pior solidão que eu já senti! Saber que você não tem mais forças, mas ainda
assim ficar espremendo, em silêncio, a alma até surgir ao menos uma gota, para
que seja possível sobreviver somente mais uma noite. E eu sobrevivi!
As pessoas que cuidaram de mim, o corpo de médicos e enfermeiros,
sempre diziam que eu era uma ótima paciente, porque eu permitia, sem reclamar,
todos os procedimentos. Eu estava impossibilitada de falar, por causa do tubo,
mas se eu pudesse falar, eu diria: "o que eu posso fazer? A minha única
chance de sobrevivência é confiar no profissionalismo da equipe e deixar que
ela faça o seu trabalho. E eu quero viver! Que tipo de adulto eu seria se me
recusasse a tomar os medicamentos, a permanecer nos aparelhos que me davam
suporte respiratório e a fazer todas as outras coisas que me eram solicitadas,
sabendo que eu estava correndo o risco de sair dali num caixão? O tempo de
pensar em morte já havia passado. Bem, ao menos assim eu achava.
Engraçado. Sempre ouvi na TV os repórteres dizendo que
"fulano ainda respira com a ajuda de aparelhos". Após um tempo no
hospital é que fui perceber que eu estava respirando assim: com a ajuda de
aparelhos e que se eles fossem desligados eu ia sufocar, até morrer.
A partir dessa percepção, eu simplesmente perdi a capacidade de
dormir, pois tinha medo que os aparelhos fossem desligados, por um motivo
qualquer, e eu estivesse dormindo, incapaz de pedir ajuda. O CTI de um hospital
é um lugar extremamente monitorado. O tempo todo há enfermeiros e técnicos
entrando e saindo do quarto. Ao mesmo tempo, entretanto, é o lugar mais
solitário do mundo, porque não há outros pacientes no quarto e seus familiares
somente podem entrar no horário da visita. E aqueles enfermeiros e técnicos
entram, fazem o seu trabalho e saem. E o trabalho não é nada bom... E alguns
enfermeiros são muito carinhosos, mas outros são muito frios.
Houve um episódio comigo que eu nunca vou esquecer: logo no início
do período da internação, fora do horário da visita, eu estava me sentindo
muito mal, muito só, sem poder falar, muito cansada e triste. Eu estava
chorando quando uma enfermeira entrou, se postou a meia distância de mim e da
porta, e perguntou se eu estava sentindo algo. Eu estava chorando copiosamente,
sem conseguir falar, por causa do tubo que obstruía a traqueia. Ela perguntou
se eu estava sentindo dor. Eu balancei a cabeça, dizendo que não e estendi a
mão em sua direção, com dificuldade, pois estava amarrada à grade da cama,
esperando que ela a segurasse. Naquele momento, eu só queria segurar a mão de
alguém, para me sentir menos só. A nazista colocou as mãos para trás, arqueou o
corpo, deu meia volta e saiu do quarto, sem dizer uma palavra. Tive que aprender
a lidar com a minha dor e a minha solidão naquele dia. Mas eu também tive
várias mãos maravilhosas pra segurar como as da Érica, da Patricia, da Ana e do
André da diálise, do Dr. Rogério (fisioterapeuta), Dr. Rogério (clínico), do
Dr. Carlos, Dr. Rodrigo Hatum, Drª. Ana, Drª. Gisele, da Márcia, do Antônio, do
Saulo, da Drª. Yandra e de outras várias pessoas que não lembro o nome agora,
mas que a minha alma jamais esquecerá! Pessoas com um coração enorme e que
podem ser encontradas no Hospital Total Cor.
Pessoas que, para fazer o seu trabalho, com todo o carinho do
mundo, me davam banho na cama, trocavam as minhas fraldas e viviam me fazendo
exames, testando a minha capacidade respiratória, prescrevendo e ministrando
medicamentos e mantendo a família informada.
Pois é, todos os dias, me furavam o dedo e a barriga. Fazia raio X
dos pulmões e, às vezes, ressonância. Além disso, eu fazia dois tipos de exame
de sangue por dia. Todos os dias! Um hemograma, colhido pela manhã, que era
moleza, porque era colhido num dos acessos, e a bendita gasometria venosa. Essa
maravilha da ciência serve para avaliar a dosagem de CO2 no sangue, dentre
outras coisas, só que o sangue é colhido na artéria, não na veia, como
normalmente se faz. E o melhor lugar para se achar a bendita artéria é na parte
interna do pulso, bem no fundo. Ou seja, é uma dor dos infernos!
Lá pela vigésima vez que colheram o meu sangue para a gasometria,
sob as minhas lágrimas de dor, porque, não raro, a enfermeira que vinha mais
vezes errava a artéria e me furava duas ou três vezes, eu me revoltei. Imaginem
a cena: eu tranquilinha, durante o horário de visita, sei lá com quem no
quarto. De repente, entra a bendita enfermeira, que errava a minha artéria, vez
por outra. Eu dei um salto na cama (mesmo amarrada), comecei a chorar, sacudir
o braço, tipo bonecão do posto e, não sei como (porque eu já estava
traqueostomizada), a gritar: "eu não quero mais isso! Essa piauiense erra
a minha veia!" E isso na frente da pobre da mulher! Foi uma confusão!
Chamaram a fisioterapeuta, vieram os enfermeiros do plantão, mandei chamar o
Dr. Rogério, disseram que o exame era exigência dele, fiquei possessa! Uma
gritaria! Então acontece o inesperado: a enfermeira responsável pela máquina da
diálise, minha querida Ana, um dos anjos que eu citei acima, toda solícita, tentando
ajudar, chega pra mim e pergunta baixinho para a moça, que estava toda
encolhida no cantinho do quarto, não ouvir: "Ela é piauiense, Beatriz?
Você perguntou?" No meio do desespero e da choradeira, tive um acesso de
riso, porque eu só tinha dito aquilo para zombar da moça que era morena-jambo e
tinha o rosto largo. Enfim, por causa do meu "piti", fizeram uma
microcirurgia no pulso e deixaram um acesso permanente até a artéria. Por que
não fizeram isso antes?
Uma coisa interessante: descobri, infelizmente durante os
procedimentos, que sou resistente a anestesia. Que lindo! Era necessária uma
dose muito maior do que a normal para me colocar para dormir. Só que depois que
eu "dormia" não podia dizer que ainda estava ouvindo tudo e sentindo
algumas coisinhas... Essa microcirurgia do pulso, por exemplo, foi um suplício,
primeiro porque eu ouvi tudo o que as pessoas diziam e parece que não
conseguiam encontrar um lugar adequado para colocar a maca em que eu estava (ela
tinha que ficar próxima a algum aparelho especifico), depois a minha artéria
estava difícil de ser alcançada ou pega e a manipulação me fez sentir dor. Não
foi uma dor insuportável, nem aguda. Era uma dor do tipo contundente e
persistente e eu sentia vontade de mexer a mão e franzir a testa de dor, mas
simplesmente não conseguia.
Outro episódio da anestesia foi quando fizeram a endoscopia. Dessa
vez foi diferente e interessante, porque eu ouvi alguém dizer que havia uma
pequena hemorragia no meu estômago e ao ouvi-lo eu comecei a visualizar um saco
escuro e um pequeno fluxo de sangue, como se eu estivesse dentro do meu próprio
estômago. Dessa vez, nao houve dor, mas quando me contaram o resultado do
exame, eu já sabia.
Bem, voltando à diálise, foi outro procedimento que eu tive que
fazer, porque tomei dez bolsas de sangue e os médicos ficaram com medo dos rins
paralisarem. Não entendi o que tem a ver a transfusão com os rins, mas tudo
bem. Outro acesso, dessa vez, na virilha. Além desse tinha o do soro, o dos
medicamentos, o do controle do líquor da medula, a sonda de alimentação (aliás,
uma delícia comer pelo nariz, vocês deviam experimentar!) e, nos primeiros
dezessete dias, o tubo da traqueia.
O tubo é um capítulo à parte, porque foi graças a ele que, num
dado momento, eu voltei a pensar em morrer. Eu não me recordo exatamente do
tempo que eu fiquei intubada assim que cheguei. Sei que acordei do coma com o
tubo e não era nada, nada agradável. Eu não podia falar absolutamente nada. A
única coisa que saía eram urros. Sei disso porque, um dia, fez um calor
insuportável (aliás, apesar da febre, agora insistente, eu morria de calor) e
fecharam completamente a porta do meu quarto. Ninguém disse absolutamente nada
e nem me deram a famosa campainha, que descobri existir somente alguns dias
depois. Quando a porta se fechou e eu me vi sozinha no quarto e impossibilitada
de falar e de me mover, pois estava amarrada a cama, comecei a gritar. Só que
havia um tubo gigante, de mais ou menos uma polegada de diâmetro, que ia da
minha garganta até os meus pulmões, e só saíam urros. Chorei e urrei durante
bastante tempo, até que alguém abriu a porta e vi um homem descendo de uma
escada, bem abaixo da tubulação do ar condicionado. Entendi, então, que ele
fora consertar a saída do ar condicionado que ficava bem na minha porta. Mas
alguém podia ter-me avisado!
Enfim, havia uma enfermeira muito bacana, que me recebeu quando
cheguei da emergência, a Érica, que me fez um alfabeto, numa folha de papel,
para que eu pudesse me comunicar com as pessoas, já que eu estava
impossibilitada de falar. Quem tiver oportunidade de conversar com Ana Claudia,
Katia e Silvia sobre esse alfabeto vai se divertir bastante. Um belo dia, um
dos fisioterapeutas respiratórios que me acompanhavam, Dr. Rogério, me avisou
que iriam tirar o tubo para que eu tentasse respirar por mim mesma. Embora eu
detestasse aquele tubo, eu fiquei temerosa porque era ele quem me fazia
respirar com qualidade.
Eu não sou uma boa competidora! Não gosto de jogos agressivos em
que ganhar ou perder represente o valor maior, seja lá em que âmbito for. Penso
que o ser humano deve competir consigo mesmo com o objetivo único de evolução
pessoal. E é nisso que tenho pautado a minha vida, desde que atingi a
maturidade. Mas como todo ser humano, eu não gosto de perder. E sou muito
exigente com a minha competidora: eu mesma. E eu sabia que não estava pronta
para essa batalha. Usando o alfabeto da Érica, pedi ao Dr. Rogério para esperar
mais um pouco. "E se eu não conseguir?" Ele disse que eu ia conseguir
e que nós precisávamos tentar porque o tubo estaria provavelmente machucando as
cordas vocais e os pulmões. Então tiramos. Foi um dos maiores alívios da minha
vida e eu mal pude acreditar no tamanho do troço que estava dentro de mim! Acho
que tinha uns trinta centímetros!
Bem, começamos, então, a trabalhar os pulmões para respirarem
sozinhos. O Dr. Rogério trouxe uma máscara, vulgarmente chamada CPAP, para
colocar sobre o meu nariz e boca. Essa máscara sopra oxigênio continuamente,
mas só na medida em que eu puxo o ar. Ou seja, estarei bem oxigenada se as
minhas vias respiratórias trabalharem. Para começar, detesto coisas que tapem o
meu rosto, então usar a máscara era como entrar numa
caverna escura, estreita e sem ar. Todo o oxigênio que ela me oferecia me deixava
nervosa e ofegante. A minha pressão subiu várias vezes. Aos poucos, eu fui me
habituando com a sensação ruim. Afinal, eu não tinha escolha e a máscara era a
alternativa ao tubo. As instruções eram: cansaço é normal. Falta de ar não.
Começou aos poucos. Às vezes eu precisava puxar mais ar do que o normal. Às
vezes, o pulmão fazia um espasmo. Às vezes, dois. Até que os espasmos foram
aumentando e comecei a precisar puxar muito mais ar e a saturação de oxigênio
no monitor mostrava níveis baixos. Foram somente vinte e quatro horas fora dos
aparelhos, até a chegada da notícia que eu sempre soube que viria: "Vamos
ter que reintubar."
Eu sei que era o papel do corpo médico fazer a escolha que
fizeram, mas para mim foi uma derrota. Eu lutei durante vinte e quatro horas e
perdi. Eu não fui capaz de vencer o meu corpo, não fui capaz de vencer pela
minha fé, não fui capaz de me superar e, agora, nada mais fazia sentido. Voltar
para o estado anterior, regredir e, pior, para uma situação de extremo
sofrimento! Foi então que entreguei os pontos. Naquele dia, eu resolvi morrer.
Minha filha já nao importava, nem minha vida, nada! Eu simplesmente não tinha
mais forças. As lágrimas brotavam sem eu ter controle, meu corpo estava mole e
a minha mente completamente vazia. Fui cercada pelas pessoas que sempre estiveram
comigo, se revezando nas visitas, Palloma, Ana Claudia, minha irmã Silvia, meu
cunhado Luiz, tias Jupira e Sandra, Kátia, Sabina, todo o corpo de médicos e
enfermeiros, todos tentando levantar meu moral, além de todos os meus amigos
queridos que oraram e pediram a Deus pela minha recuperação e aqueles que me
visitaram com tanto carinho minha mãe, minha filha muito amada, San, Serginho,
Simone, Edinho, Beth, Beto Gaspari, Jane, Adriano, Fabrício, Bruno Maia, Dr.
Nelson (meu salvador), Regina, Dr. Jocimar, Henriquinho, Hilda, Cris, Fê, Lígia, tia
Ângela, Jéssica, Felipe, Jaqueline, Maurício e outros tantos que, por lapso de memória, faltará aqui mencionar, mas
nunca estarão fora do meu coração. Enfim, a todo momento entrava uma enfermeira
no quarto só para me animar. Foi muito legal da parte deles! E eu acabei
deixando essa ideia de morte para lá. Afinal, se eu tivesse mesmo que morrer,
seria na hora que Deus me chamou, lá diante da Luz, não agora na hora que eu
quero, não é não?
Depois desse dia, resolvi que ia dar a volta por cima e, após ser traquostomizada, até dancei o tchu-tcha-tcha para a Ana Claudia filmar. O vídeo está aí para vocês assistirem. Vamos dançar mesmo nos piores momentos!!!
De qualquer forma, quando a gente está na merda tudo acontece...
Só um detalhe: no CTI eu não vestia a túnica. Como a minha pressão vivia
subindo, eu já havia tido uma parada respiratória e os médicos já tinham me
desenganado algumas vezes, eu ficava meio que preparada para uma emergência da
emergência. Então, eu usava fralda descartável (aliás, super excitante fazer
cocô na fralda, você também devia experimentar isso! Melhor ainda quando os
enfermeiros demoram para vir trocar a fralda) e a túnica ficava cuidadosamente
dobrada sobre o meu corpo, cobrindo os meus seios, barriga e coxas. As pernas e
pés ficavam escondidos numa bota meio high tech, que os massageava
continuamente a fim de evitar trombose (diante da completa imobilidade) e, por
cima dessa, outra de espuma, tipo caixa de ovo, para evitar escaras. Pois
justamente no dia que eu tirei o tubo e estava fraca, com pouca oxigenação,
meio lerda, eu acordo com um enfermeiro, na cabeceira da minha cama, deitado
sobre a minha cabeça, esticando a túnica sobre o meu corpo, alisando a túnica
e, consequentemente, o meu tórax e meus braços, escorregando as mãos pelos meus
braços. Esfregou o rosto no meu, escorregou o rosto até o meu ouvido e ficou
respirando forte, meio que gemendo. Então, apesar de meio sonolenta, eu
consegui me mexer, para ele ver que eu estava acordada, mas ele, muito calmo,
continuou o que estava fazendo e falou: "fica calma que vai ficar tudo
bem". Tão bonzinho! Nessa chegaram duas enfermeiras. Daí ele ficou de pé,
virado para mim, de costas para elas (claro, o cara de pau estava
teso!) e, com jeitinho, deu boa noite e saiu, quem nem siri. Com muita
dificuldade, consegui contar para uma das enfermeiras, que chamou a médica
chefe do plantão e, a partir daquele dia, só fui atendida por mulheres. Ufa!
Senti-me naquele filme do Almodóvar!
Coisas muito estranhas aconteceram naquele hospital! Sei que eu
vou parecer louca, mas me propus a contar a história e vou correr o risco. Eu
creio ter estado em dois quartos diferentes, simultaneamente. Um pintado de
salmon, com paredes lisas, mantido sempre a meia luz, cujos enfermeiros se
vestiam de bege e sempre falavam comigo e, via de regra, descreviam os
procedimentos que iam fazer. O outro era pintado de branco, tinha prateleiras
de madeira na parede à minha esquerda, mantido sempre com luz clara e forte,
cujos enfermeiros se vestiam de azul-rei e nunca falavam comigo. Realizavam
diversos procedimentos em mim, mas nunca me dirigiam a palavra. Este último
quarto eu sempre via de olhos fechados. Não dormindo. Acordada, mas de olhos
fechados.
Eu sei que é difícil compreender. Eu mesma levei tempo até aceitar
o que estava acontecendo. Bem, como disse antes, eu tinha uma dificuldade
tremenda para dormir, por isso passava o tempo todo me testando. Dr. Carlos até me apelidou de coruja, porque eu passava a noite inteira
acordada, apesar das várias doses de alprazolam e rivotril. Um dia, eu estava
no meu quarto, aquele salmon à meia luz, olhando para o nada e, de repente,
fechei os olhos. Ao fechar os olhos, avistei o outro lugar. Eu deitada,
exatamente onde eu estava, só que num outro quarto, aquele branco, claro, com
prateleiras na parede à minha esquerda. Imediatamente abri os olhos para
visualizar, tranquila, o quarto salmon e ter certeza de que eu estava ali, no
lugar “real”. Mas acabei ficando curiosa e comecei a abrir e fechar os olhos
para ver o que acontecia. Olhos abertos, quarto salmon. Olhos fechados, quarto
branco. “Ok, Beatriz, você não tem dormido direito e está tomando muitos
remédios, é óbvio que está tendo alucinações!”, eu pensei. Bem, isso aconteceu
durante vários dias e, num deles, ocorreu um fato que me deixou mais crédula.
Por querer provar que a minha mente estava me enganando, eu ficava me testando
a toda hora. Abrindo e fechando os olhos, procurando saber que tipo de medicamento
eu tinha tomado, etc. Nesse dia, eu já tinha visto o quarto, mas com o adendo
dos enfermeiros vestidos de azul-rei, completamente diferentes dos enfermeiros
do Total Cor, que se vestem de bege. De repente, entra no meu quarto uma
enfermeira, vestida de bege, pronta a realizar um procedimento médico.
Aproveito a sua presença incontestável e, enquanto ela caminha da porta até a
minha cama, fecho os meus olhos, no fundo esperando ver apenas escuridão. Eis
que surge o quarto branco, bem menor que o meu "real", se assim devo
chamá-lo, com duas prateleiras pregadas na parede à minha esquerda e três
enfermeiros vestidos de azul-rei, um à minha esquerda, abaixo das prateleiras,
e dois à minha direita, exatamente onde a enfermeira do quarto bege vai encostar,
agora que abri os olhos. Sim! Eu estava vivendo simultaneamente em duas
dimensões. Penso que eu estive tão perto da morte, como os próprios médicos
diziam à minha família, que meu corpo astral, duplo etéreo, corpo fluídico,
mente inconsciente, perispírito, seja lá como quer que chamem, estava livre,
solto do meu corpo físico, passeando entre os dois mundos.
Aliás, há outra coisa que desejo contar. No dia que eu “decidi”
morrer, eu ouvi minha irmã dizer que não ia embora do hospital, que passaria a
noite ali. A enfermeira lhe disse que não adiantaria porque o horário da visita
do CTI já havia passado e ela não poderia me ver. Que era para a minha irmã ir
embora e, se acontecesse algo, a enfermeira entraria em contato. Mas a minha
irmã ficou irredutível. Disse que não iria embora e não foi. Passou aquela
noite no hospital, orando e pedindo pela minha vida. Não sei quanto tempo
depois, se foram horas ou dias, ouvi também a vozinha do meu afilhado Vitor, de
apenas oito anos de idade, dizendo que queria ver a dinda, queria falar com a
dinda. Mas a enfermeira disse que não podia porque ali não era lugar para
criança e que era bom que o levassem logo embora para evitar o perigo de
contaminação por bactérias.
Eu só me lembrei dessas duas conversas depois de ter saído do
hospital e, como algumas lembranças ainda são vagas, acabei perguntando à minha
irmã e à minha comadre sobre a existência das conversas. Ambas ficaram
assustadas com a minha pergunta e me disseram que as conversas ocorreram sim,
exatamente como eu as descrevi, mas que eu não podia tê-las ouvido porque elas
aconteceram no térreo do hospital e eu estava internada no quinto andar. Diante
disso, como duvidar dos meus passeio astrais?
Aliás como eu poderia agora duvidar do mundo espiritual, diante de
toda a experiência que tive? Eu passei por muita dor, por muito medo e muito
sofrimento, e não desejo para ninguém, nem desejaria passar de novo, mas tudo
valeu! Valeu para me mostrar que Deus é Luz, Paz, Misericórdia e que eu tenho
livre arbítrio, dentro da vontade dEle. Valeu para mostrar que eu não tinha
tantos amigos como eu pensava que tinha, mas que os que eu tenho são os
melhores do mundo e que alguns que eu achava que eram só colegas são meus
irmãos. Valeu para unir mais ainda a família. Valeu para eu entender que laços
de sangue são mais fortes que a proximidade, pois os primos que eu nunca
conheci, filhos de tios que nem me lembro, doaram seu sangue para que eu não
morresse. Hoje, por eles, que eu nem sei o nome, eu carrego, além dos laços
civis da consanguinidade, os laços espirituais da gratidão eterna. Valeu,
principalmente, para confirmar uma crença minha na unidade da fé e do amor em
Cristo, através de uma aparição abençoada.
Como eu disse, eu não tinha sossego. Toda hora entrava um para me
furar. Um dia, entrou uma enfermeira e se dirigiu ao meu lado esquerdo a fim de
colocar algo no acesso que estava no braço esquerdo. O quarto estava à meia
luz, como sempre. Enquanto ela fazia o seu trabalho, eu a fitava. De repente, o
rosto dela começou a se transfigurar, como se fosse uma porção de tintas sendo
misturadas, fundindo-se numa cor escura, meio cinza com violeta, em forma de
círculo, no sentido horário. Eu pensei logo que estivesse drogada por causa dos
remédios. Comecei a piscar os olhos várias vezes e a sacudir a cabeça, mas a
massa continuava a se movimentar. Olhei para o outro lado, respirei fundo,
pensei em outra coisa, tenando achar o foco. Olhei de volta e continuava a
mesma coisa. Fiquei olhando e a massa foi-se transformando no rosto do Chico
Xavier. De óculos, aquele da armação preta, mais grossa, mas sem boina. Eu,
hein! Eu nem sou kardecista! Fiquei um pouco assustada. Pisquei os olhos várias
vezes, sacudi a cabeça de novo, olhei para o outro lado e, quando olhei de
volta, lá estava ele, impassível, olhando para baixo, para mim, não para meus
olhos, para o meu corpo. E, como se eu não pudesse vê-lo, ele continuou assim
por um tempo, mexendo as mãos, olhando para baixo, muito sério. E eu fiquei
olhando para ele o tempo todo, dessa vez! De repente, começou a aparecer a
"massa de tinta" de novo e, depois de um tempo, era novamente a
enfermeira. Com muita dificuldade para falar, eu lhe perguntei a sua religião,
pois pretendia dividir com ela a minha emoção. Mas ela aumentou a minha emoção
ao cubo ao dizer que era evangélica! Então me limitei a pedir uma oração, no
que fui prontamente atendida. Tá certo que eu nao pude dividir a emoção de ter
recebido uma visita tão ilustre, ainda mais tendo sido ela o canal. Imagina
dizer isso a uma evangélica! Mas o fato de ele ter escolhido uma pessoa de
religião diversa da dele como canal para realizar um trabalho de cura
espiritual, foi o alívio supremo para a minha tristeza diante de tantas brigas
religiosas. Realmente no mundo espiritual não importam as denominações e sim os
corações. Aleluia!
Bem, depois de alguns sufocos, eu melhorei, tirei definitivamente
o tubo, fiz uma traqueostomia, a pressão normalizou, a febre cedeu, mas os
últimos dias no CTI foram complicados. Porque eu estava traqueostomizada, com
um respirador acoplado, que era retirado durante um número de horas por dia. O
famoso desmame. Depois da traqueo, volta o Dr. Rogério com uma máscara mais
bonita que o CPAP. “Vamos experimentar, porque essa é melhor para você.” Porra!
O negócio parecia a máscara do Jason de Sexta-Feira 13! A máscara era do
tamanho do meu rosto inteiro e cheia de furos. Era para cobrir o rosto todo
mesmo! Se a outra que cobria só o nariz e a boca era como entrar numa caverna
escura, estreita e sem ar, essa era como se a caverna tivesse desabado sobre
mim! Foi só colocar e eu entrei em pânico. Comecei a chorar, desesperada e a
máscara foi para escanteio. Voltamos ao velho e bom CPAP e, às vezes, o tubinho
da traqueo era acoplado num aparelho respirador.
Só que eu fiquei muito tempo respirando com o tubo, então os meus
pulmões desaprenderam de respirar e, às vezes, o aparelho apitava alto pra
caramba, pra dizer que eu não estava respirando. Cacete! Aprendi na escola que
esse movimento é involuntário! Pois agora eu tinha que pensar para respirar.
Como dormir? Toda vez que eu pegava no sono, a máquina apitava. Isso durante o
dia, no horário da visita, porque a noite eu não dormia nem a pau! Vai que esse
treco não apita e eu morro sem respirar! Rá! Nem alprazolam, nem rivotril me fazia
dormir.
Fui treinando a respiração nova, com e sem o respirador, em
horários espaçados. Aos poucos os médicos foram tirando o oxigênio e eu fui
conseguindo respirar sozinha, sem apito. Quarenta e oito horas seguidas. Já
consegui me levantar com a ajuda dos fisioterapeutas e comer um iogurte com a
fonoaudióloga. Depois de vinte e oito dias de CTI, quarto. Ufa!
Visitas direto agora. Solidão nunca mais! Vamos tirar a fralda, já
que conseguimos levantar os quadris? Graças a Deus! "Palloma, chama a
enfermeira para trazer a comadre porque eu quero fazer xixi." "Ela já
vem." Quinze minutos, a enfermeira chega com a comadre. "Vamos
lá?" E eu respondo "Agora já fui." Troca a roupa de cama toda,
toma banho, troca a camisola e deixa a porra da comadre aqui!
Dr. Flavio foi diminuindo a cânula da traqueo e me mandou pra casa
em oito dias. Foram seis meses de recuperação quase completa. Meus músculos
ainda se ressentem da imobilidade total durante vinte oito dias, mas depois da
fisioterapia domiciliar e, agora, com o trabalho e com o retorno à dança, aos
poucos tudo voltará ao normal. Com o corpo é mais fácil.
Quando cheguei em casa, eu tinha pesadelos, que começaram no
hospital. Acordava sufocada, com falta de ar, como se fosse morrer. Tão logo
despertava, tomava consciência se tratar de um delírio. Foram noites
complicadas para tia Jupira que extraiu mais de dois meses da sua vida para me
amparar, morando comigo e me dando todo carinho e atenção de que eu
necessitava. Os pesadelos passaram.
O momento da reintubação, entretanto, ainda é, pra mim, uma marca.
Às vezes, me pego, na hora de dormir, deitada, lembrando do Dr. Rogério (clínico) sobre a minha cabeça, tirando as minhas mãos da frente do meu rosto,
tentando aproximar o afastador, ou sei lá o nome que tem, tirando do caminho as
minhas mãos, enquanto eu chorava e gemia, implorando internamente que houvesse
alternativa, e isso durou o tempo de a anestesia fazer efeito para que eu
dormisse e o trabalho da equipe fosse feito. Eu não sei quanto tempo a
anestesia demorou para fazer efeito, mas a mim me pareceu uma eternidade e
ainda me parece, até hoje...
2 comentários:
Ahhhh meu amor. Sempre cito vc como exemplo para os meus pacientes que acgam que nao vão sair dessa. Te admiro pela garra que tem de viver. Bjs Erica do Alfabeto rs
Ahhhh querida,mto bom ser lembrada por vc e saber que de alguma forma lhe ajudei na sua recuperação. Sempre cito vc como exemplo para os meus pacientes. Grande bj erica do alfabeto...rs
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